O mito do rapto de Perséfone por Hades

Este mito trata de um tema caro aos antigos “mistérios de Elêusis”, cidade grega que, através do culto órfico-pitagórico, reverenciava a deusa da agricultura, Deméter (Ceres, na mitologia romana, daí “cereal”), que envolvia o rapto de sua filha, Perséfone.

Se, no cristianismo temos a dilacerante dor da Virgem Maria que perde seu único filho, Jesus, anteriormente, no paganismo testemunhamos o relato da mãe que pranteia sua jovem filha, Perséfone (Prosérpina, na mitologia romana).

Narra o mito que a menina estava num jardim, a colher narcisos quando, subitamente, submergiu do solo o deus do reino dos mortos, o poderoso Hades (Plutão, na mitologia romana), que usando de força e violência, a rapta e a conduz aos seus domínios, embaixo da terra.

Diz-se que justamente nas profundezas da terra estão guardadas as maiores riquezas: ouro, diamantes, esmeraldas, petróleo e demais outras preciosidades minerais.

Quando se deu conta do desaparecimento de sua filha, Perséfone, a deusa do cereal e de tudo o que floresce e alimenta homens e animais aqui, na terra, ficou transtornada.

Busca daqui, pergunta dali ninguém dizia o que se passara, até que o deus da harmonia e da saúde, o luminoso Apolo (Hélios, na mitologia romana), decidiu revelar o que houvera acontecido: acompanhado pelo fiel Cérbero, o bestial cão de três cabeças, Hades raptou a jovem e a conduziu ao mundo subterrâneo.

Não espanta que tenha sido justamente Apolo a fazer tal revelação! Realmente à luz, nada escapa, sobretudo a verdade.

Indignada com tamanha ousadia do senhor do reino dos mortos. Deméter protesta na assembleia dos deuses olímpicos.

Recorre à Zeus (Júpiter) para que ouça seu apelo, exigindo reparação imediata por parte de Hades, seu irmão e tio da donzela.

Vale lembrar que assim como Hades, Deméter também é irmã do Soberano do Olimpo. Os seis irmãos filhos de Chronos (Saturno) com Gaia (Rhéa, a Terra) são: Poseidon (Netuno), Hades (Plutão) e Zeus (Júpiter) por um lado, e Hera (Juno), Héstia (Vesta) e Deméter (Ceres/Cibele) por outro.

Infelizmente, foi em vão que a deusa Deméter recorreu ao soberano do Olimpo, Zeus, que esquivou-se dizendo que a menina reapareceria.

Embora todos estivessem solidários e cônscios da dilacerante dor que afligia a pobre mãe, igualmente todos abstiveram-se de ajudá-la, como enfrentar o próprio Hades?

Altiva, Deméter profere que hão de procurá-la trazendo uma solução.

Foi aí que a deusa da agricultura, da semeadura e da colheita, teve a ideia de fazer cessar o crescimento de todos, absolutamente todos os grãos.

Nada mais brotava, sequer um mísero grão de trigo. Atônitos, os agricultores viram minguar todo empenho, todo trabalho na semeadura,

Não tardou muito e os seres humanos se depararam com uma escassez de alimentos nunca vista. Simplesmente não havia o que comer, e até mesmo os animais pereciam sem ter como se alimentar.

À medida em que o tempo ia passando, a situação ia se tornando cada vez mais insustentável, e os homens rogavam aos deuses, sobretudo a Zeus (Júpiter) que os tirassem daquela penúria, daquela fome miserável.

Como as orações e oferendas não surtiam efeito , foram questionando a crença na proteção divina, começando mesmo a duvidar da existênia dos deuses.

Foi então que Zeus finalmente solicitou a presença de sua irmã, Demèter, e implorou para que ela voltasse a presidir sua instância, que era a de fomentar o florescimento dos alimentos aos mortais.

Irredutível, Deméter afirmou que poderia sim, fazer com que a Terra voltasse a germinar, mas somente com a condição de ter sua amada filha, a jovem Perséfone, de volta aos seus brações.

Zeus (Júpiter), por sua vez, exigiu a presença de seu irmão, o deus do reino dos mortos, Hades (Plutão) e argumentou que os mortais morressem de inanição, eles próprios estariam perdidos, pois quem então iria adorar a eles, os imortais?

No entanto, apaixonado, feliz por ter encontrado sua consorte, Hades (Plutão) mostrava-se intransigente. Não abriria mão da bela e jovem Perséfone, que já ocupava o trono de rainha do reino dos mortos, reino no qual, uma vez ingressado, a ninguém é permitido escapar.

Exceto, claro, Hermes (Mercúrio), o mensageiro dos deuses que justamente por presidir as ideias e a instância mental, lógica, possui livre entrada e saída sempre que necessário.

Deméter insiste que não arredará o pé de sua decisão. Que todos os mortais pereçam, diz ela.

Diante desse impasse, o soberano do Olimpo insiste com Hades, mas ele então diz que se a jovem não comeu da fruta de seu reino, a romã, poderá voltar, do contrário, ele nada poderia fazer, pois ela já pertencia a outro mundo.

Ao ouvir isso, Deméter sentiu um grande alívio, pois em seu íntimo sabia que desesperada e saudosa, sua filha sequer tivera apetite para ingerir o que quer que fosse, chorando de saudades da mãe.

Disso, a deusa tinha certeza, e apostou com Hades que sua filha, tomada de sofrimento, havia se abstido de se alimentar. Seu coração ficou em festa, ansiosa pelo reencontro.

Mas quando os deuses foram verificar, Perséfone já havia sim, ingerido as romãs. Desapontada por ter perdido a aposta, ainda assim – para desespero dos deuses olímpicos – ,Deméter manteve sua postura ameaçadora, dizendo que não declinaria de sua intenção de dizimar os mortais.

Foi quando, enfim Zeus propõe uma partilha que contente a ambos, tanto a Deméter quando ao Hades: que Perséfone permaneça na metade do ano com o marido e a outra metade em companhia de sua mãe.

É com o relato de neste mito que os antigos explicaram as alternâncias nas fases das estações do ano: no verão e na primavera, quando Perséfone regressa do reino de Hades pelas mãos de Hermes (Mercúrio), a deusa da agricultura fica em festa, alegre por ter a filha em seus braços.

Já no outono e no inverno, a jovem permanece em companhia de Hades, no reino dos mortos. É quando sua mãe, saudosa, explicita sua dor através da natureza (physis), recuando na fomentação da proliferação das flores e dos alimentos. Até que sua filha amada retorne.

LUCIENE FELIX LAMY - Professora de Mitologia Grego-romana na Galleria Borghese, Roma. Formada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e foi Colunista de Filosofia na Carta Forense (SP) de 2006 até o encerramento do jornal, em 2019.
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